quinta-feira, 5 de maio de 2011

Entre Aspas-Receita de Mulher





As muito feias que me perdoem

Mas beleza é fundamental.

É preciso que haja qualquer coisa de flor em tudo isso

Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture

Em tudo isso (ou então Que a mulher se socialize elegantemente em azul,

como na República Popular Chinesa).

Não há meio-termo possível. É preciso

Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito

Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto

Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.

É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche

No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso

Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas

Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços

Alguma coisa além da carne: que se os toque

Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos

Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro

Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e

Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem

Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então

Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca

Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.

É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos

Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas

No enlaçar de uma cintura semovente.

Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras

É como um rio sem pontes. Indispensável.

Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida

A mulher se alteie em cálice, e que seus seios

Sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca

E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.

Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral

Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!

Os menbros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas

E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem

No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.

É aconselhavel na axila uma doce relva com aroma próprio

Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).

Preferíveis sem dúvida os pescoços longos

De forma que a cabeça dê por vezes a impressão

De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre

Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos

Discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face

Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior

A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras

Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferencia grandes

E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e

Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão

Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta

Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.

Ah, que a mulher de sempre a impressão de que se fechar os olhos

Ao abri-los ela não estará mais presente

Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá

E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber

O fel da dúvida. Oh, sobretudo

Que ela não perca nunca, não importa em que mundo

Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade

De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma

Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre

O impossível perfume; e destile sempre

O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto

Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina

Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição

Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação imunerável.

Quer saber quem escreveu esse poema
Vinicius de Moraes

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